Gênero e diversidade no Secretariado – desafios, retrocessos e possíveis avanços

By Venan Alencar

Acredito que o caminho para se falar de diversidade está atravessado academicamente pelo conceito de interseccionalidade (Crenshaw, 2002), em que variáveis como gênero, raça, classe, entre outras, são entendidas como orientadoras de práticas sociais. Em outras palavras, a partir do momento em que os sujeitos são compreendidos em suas singularidades, deslocam-se os olhares não somente para aquilo que é dito “comum” a todos, mas sobretudo ao que nos difere do hegemônico. Nesse sentido, Preciado (2022, p. 172) nos chama a atenção para a “transversalidade sistemática” que já atravessa as relações de poder em que nos encontramos implicados, sobretudo enquanto sujeitos em posições e funções de assessoria no trabalho. Por meio desse conceito, o autor quer dizer que, por mais que tentemos categorizar nossas identidades e, por meio disso, clamar por uma diversidade e interseccionalidade, tudo isso já faz parte das nossas relações e constituem nossas subjetividades. Ainda assim, penso que é importante, na maioria das vezes, se posicionar como “pertencente” a determinadas identidades para que algo mude e se transforme no mundo (Austin, 1962).

Parece-me que, de alguma forma, a questão do gênero sempre esteve presente nos debates do Secretariado. Desde que as mulheres assumiram a predominância na profissão (devido, lembrem-se, a uma necessidade do mercado), assistimos a uma série de implicações desses corpos no mercado de trabalho, muitas vezes não da maneira como gostaríamos. Assim, as representações ditas femininas não só contribuíram para uma visão estigmatizada e estática sobre a “mulher secretária” (Paganini et al., 2024), como também oportunizaram e oportunizam formas de violência a essas e a outras performances de gênero.

Nessa cadeia de produções de significados sobre o que é ser secretária, algumas possibilidades são incluídas e outras excluídas. Os ideais de feminilidade estão tradicionalmente em oposição aos de profissionalismo, pois estes são da ordem do “masculino” (Reis, 2018). Também circula no senso comum o imaginário sexista e binarista de que os homens estão para a ação, enquanto as mulheres estão para a simples “aparição” (Halperin, 2012). Nesse sentido, como podem esses corpos “femininos” produzirem trabalho fora da esfera doméstica (local que não é, inclusive, considerado de trabalho)? Categorias fixadas em preceitos biológicos ditavam quais eram as ocupações possíveis para os gêneros, de modo que às mulheres lhes foram incumbidas ocupações de cuidado, preservando-se as características de boa aparência e simpatia. Tais características, até pouco tempo atrás, eram tidas como “naturais”, vindas de uma essência ou de uma Natureza, e quase nunca eram questionadas ou relacionadas, como o fazemos hoje, a formas discursivas e a relações de poder que permitiram e contribuíram para que essas relações fossem possíveis (Foucault, 1978).

É impossível abordar gênero, corpo e poder sem passarmos pela noção de que se o corpo produz linguagem, a linguagem também produz corpos (Butler, 1993). É essa linguagem, portanto, que fabrica e estabelece (dentro de alguns limites e com espaços para tensionamentos) corpos múltiplos e diversos que irão ocupar também o mercado de trabalho e, por isso, necessitam que lhe sejam garantidas formas de vida vivíveis. Se, para Nonato Júnior (2009), a ocupação dos profissionais de Secretariado ganha relevância nas décadas de 1950 e 1960, é a partir da virada do século que temos assistido a transformações rápidas e substanciais nos cargos e posições, muitas vezes com nomes inéditos mas que, essencialmente, desempenham funções idênticas ou correlatas às de nossa profissão. Paralelamente, os debates sobre questões de gênero e sexualidade, tanto academicamente como na sociedade de forma geral, vêm sendo impulsionados por diversas pautas, desde os movimentos de liberação sexual nos Estados Unidos também nos anos 1960.

Portanto, esses dois movimentos acontecem juntos na História e trazem reflexos para as políticas da época e para as atuais. Os corpos dissidentes (trans, gays, lésbicos, PCDs, racializados) não ocupam as vagas de trabalho na mesma proporção que os corpos hegemônicos (branco, cis, hétero, do Norte global), e a luta para que haja “inclusão” persiste. Ainda assim, vivemos em tempos de um evidente conservadorismo, em que direitos de pessoas trans e não-binárias, por exemplo, têm sido cotidianamente atacados (sobretudo na atual administração do governo estadunidense).

Qual é o nosso papel diante de tudo isso? Bom, acredito que uma das principais características do profissional de Secretariado Executivo é a intelectualidade, ou seja, o fato de devermos estar a par dos acontecimentos não só na empresa, como no mundo. Mudanças políticas afetam os ambientes organizacionais, e vice-versa. É comum, por exemplo, que participemos de comissões ou de projetos que discutam e busquem promover a diversidade, tanto em ambientes privados como públicos. É confiada a nós a responsabilidade de participar de decisões que irão impactar profundamente a vida de pessoas a quem pouco se tem oportunizado. Trata-se, assim, de um compromisso político, pois diz respeito a vidas que tentam se organizar dentro de uma sociedade que as oprime e que buscam, de alguma forma, participar do sistema capitalista a altas custas.

Diante de retrocessos, cabem, mais do que nunca, mudanças e ações. Como nos lembra Foucault (2013), se existe poder, sempre haverá espaço para disputas e resistências, para avanços e desafios. Não nos esqueçamos das nossas agências enquanto profissionais que dominam a comunicação escrita e oral, pois é a partir dessa competência que podemos promover potentes mudanças micropolíticas (em ambientes organizacionais onde atuamos). Assim, à medida em que o poder produz e assujeita nossos corpos, também temos a capacidade de, mesmo que em pequena escala, promover mudanças enquanto sujeitos que estão constantemente implicados em relações de poder no exercício profissional.

Por fim, não pretendia esgotar o assunto com esse breve texto, mas sobretudo incentivar a categoria a refletir sobre algumas ações e familiarizar, quem sabe, alguns sujeitos com o debate, ou ainda incentivar que busquem mais a respeito. Voltar-se para as mudanças sociais e, mais especificamente, às questões de gênero e sexualidade, não pode ser pauta de uma determinada ala política, mas de todas, de forma transversal, pois as pessoas estão se inserindo no mercado de maneiras diversas, trazendo consigo subjetividades e demandas também diversas. Se for nossa responsabilidade fazer com que essas vidas sejam preservadas e garantidas enquanto profissionais, que saibamos fazê-lo de forma ética, como sempre nos tem sido confiado na profissão.

Referências

AUSTIN, J. L. How to do things with words. Oxford: Oxford University Press, 1962.

BUTLER, J. Bodies that matter: on the discursive limits of “sex”. New York: Routledge, 1993.

CRENSHAW, K. W. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, v. 10, n. 1, p. 171 – 188, jan. 2002.

DE FÁTIMA PAGANINI, J.; ALTHAUS PEREIRA, P.; CAMARGO, M.; ROCHA, C. M.; OLIVEIRA DE ALENCAR, V. L. Análise dos setenta anos do “Dia da Secretária”: um estudo das publicações na internet. Revista Expectativa, [S. l.], v. 23, n. 3, p. 1–26, 2024. DOI: 10.48075/revex.v23i3.32814. Disponível em: https://e-revista.unioeste.br/index.php/expectativa/article/view/32814. Acesso em: 10 mar. 2025.

FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. 26ª ed. São Paulo: Graal, 2013.

FOUCAULT, M. The History of Sexuality Volume I: An Introduction. New York: Pantheon Books, 1978.

HALPERIN, D. M. How to be gay. Cambridge, Massachusetts: Belknap Press, 2012.

HALPERIN, D. M. Saint Foucault: Towards a Gay Hagiography. Oxford University Press. New York, NY, 1995.

NONATO JUNIOR, R. Epistemologia e teoria do conhecimento em secretariado executivo: a fundação das ciências da assessoria. Fortaleza: Expressão Gráfica, 2009.

PRECIADO, P. Dysphoria mundi. Madrid: Anagrama, 2022.

REIS, A. C. G. Imagens e imaginários das secretárias em Mad Men: uma análise retórico-discursiva das personagens Peggy Olson e Joan Holloway. Tese (Doutorado em Estudos Linguísticos). Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte. 284f. 2020.

Compartilhe!